Eu estava assistindo um episódio de Black Mirror que
mostrava uma tecnologia capaz de fazer as pessoas apagarem todas as memórias que
tinham com alguém com um simples apertar de botão. Bastava clicar em block para que
as pessoas não precisassem mais visualizar os rostos daqueles que
gostariam de esquecer, e o melhor, ao apertar o famoso botão, os ditos cujos também
não poderiam mais entrar em contato de qualquer forma com aquele que decidiu
ignorá-los. Normalmente os episódios dessa série me deprimem bastante, mas
preciso confessar, quando terminei esse capítulo torci em silêncio pra que tal
tecnologia fosse inventada logo. Já imaginou? Poder fugir de todas as
lembranças e suas dores com um clique?
Alguns dias depois, comecei a assistir uma entrevista com
Eliane Brum, uma das minhas escritoras preferidas. Na entrevista, ela falava
sobre seus escritos, histórias ignoradas que ela faz questão de contar. Gosto de
pensar que Eliane da voz a aqueles que não queremos escutar, afinal, quem gosta
de ouvir sobre pobres coitadas de países subdesenvolvidos que estão morrendo de
doença de chagas e não tem para onde correr? Esse tipo de realidade fere a
gente, e a gente não quer mais feridas, nós queremos deitar na cama após um dia
exaustivo de trabalho e assistir uma comédia no netflix, ou sair para beber
umas com os amigos e deixar as preocupações para lá. Já estamos muito imersos
em nossas próprias dores para ter de pensar sobre as dores dos outros, não é?
Bom, na entrevista, Eliane conta que conheceu uma dessas
garotas. Seu nome era Cristina, e ambas conviveram por dois meses durante uma
viagem da escritora à Bolívia. Eliane sabia que não ficaria lá para sempre, e
também já imaginava o que o destino deixaria para sua amiga boliviana quando
ela se fosse. Cristina também sabia, e no dia em que as duas se despediram, fez
uma súplica – ainda que soubesse que não poderia ser atendida – à amiga
brasileira: “Não me deixa aqui pra morrer”, foi o que ela pediu. Com o coração
na mão, Eliane fez a única promessa que conseguiria cumprir: “Eu vou contar sua
história”.
Ao retornar, a escritora se afoga em uma tristeza profunda.
Se sente pequena e completamente inútil, afinal, suas palavras não poderão
salvar a vida de Cristina, e nesse momento, muito menos a sua. Eliane conta que
durante dias, ela mal conseguia comer, que sua pequenez em meio a aquela
situação toda, tão maior que ela, estava a destruindo. Até o dia em que
percebeu que seu sofrimento a estava impedindo de cumprir a única promessa que
havia feito a sua amiga: contar sua história. E se a história de Cristina não
fosse contada, ninguém além das duas conheceria seu sofrimento. Se as pessoas
não a lessem, Cristina não mais existiria, e as dores que as duas sentiram
seriam em vão. Eliane publicou a história da amiga, e isso fez a dor amenizar –
ainda que continuasse existindo.
Eliane conta essa história com uma voz leve e calma, mas ao
ser questionada sobre a leveza de suas frases, ri. Não se sente leve – pelo contrário!
– Convive com um peso enorme dentro de si. Um peso que é só seu, e do qual não
abre mão, pois é parte de sua vivência como narradora de histórias
desconhecidas.
Nos minutos seguintes, Eliane fala sobre a importância que nossas
dores têm, e como perdemos tempo tentando ignorá-las. A dor, assim como a
felicidade, é um sentimento pleno, e mais uma prova de que estamos vivos e
somos capazes de sentir. E se a gente não sentir, o que isso nos torna?
Depois da palestra, voltei um pouco atrás sobre o episódio
de Black Mirror. Pensei em todas as minhas dores, e nos rostos que já rezei
tanto para esquecer. Algumas lembranças me levam a lugares tão sombrios, que eu
sinto medo, e o medo – ao contrário do que muitos acreditam – é um grande
motivador. Eu sinto tanto pavor de reviver aquele passado no presente ou num
futuro, que as lembranças me fazem querer mudar. E eu preciso delas pra saber o
que eu não quero voltar a me tornar, o que eu não quero voltar a fazer, e quais
são os rostos que eu não quero mais encontrar.
Lembrar pesa, dói, e esquecer de tudo o que machucou, de
fato, seria uma forma de fuga maravilhosa. Mas quando a gente nega, fica mais
vulnerável a viver a dor de novo, e de novo, e de novo... Até cansar de fugir.
O esquecimento torna toda a dor vã, e nós precisamos dar a ela um propósito.