quarta-feira, 20 de julho de 2016

A despedida.

Eram cinco da tarde de uma terça-feira. Isa bateu na porta e ouviu uma voz conhecida, porém agora bem mais fraca, dizer pra que entrasse. Entrou devagar.
- Boa tarde, Dora! Como você está hoje?
O quarto era pequeno. Paredes preenchidas de pinturas, um guarda-roupas, uma penteadeira antiga e, no centro do cômodo, uma enorme cama de casal. Dora estava deitada, quase escondida, por baixo de tantos cobertores. O rosto franzido enaltecia suas rugas, e a boca semi-aberta dava a ela uma expressão de dor. Isa se sentou na cama e segurou as mãos envelhecidas da amiga, que tremiam um pouco mais que no dia anterior.
- Tô feliz que você veio me ver.
Dessa vez sua voz saiu quase como um sussurro. Os olhos quase fechados, lutando pra se manter um pouco abertos, os lábios, trêmulos como as mãos, esboçavam um sorriso. Isa tentou sorrir de volta, enquanto lutava pra que as lágrimas não lhe saltassem dos olhos.
Estava fazendo um mês que Isa assistia a dissolução de sua amada amiga Dora.
Dora, que sempre fora exemplo de vitalidade e movimento. Que estava o tempo todo tramando alguma coisa, lendo sobre um tema diferente, conhecendo pessoas e lugares novos e aproveitando o doce e o amargo da vida. Gostava do exótico, vez ou outra dava um desejo forte, e ela comia queijo com peixe e manga no café da manhã. Seu passa-tempo favorito era visitar todos os brechós que encontrasse, cheirar as roupas e objetos que lhe chamavam a atenção e depois inventar histórias sobre seus antigos donos. Passava suas fábulas pra um caderninho azul, que estava sempre com ela (não se sabia quando iria encontrar algum cheiro que lhe despertaria uma nova narrativa!). Tinha medo de gatos, e sempre que via um latia pra tentar assustá-lo. Dizia que era assim que ela os enfrentava e mostrava que não os deixaria impedi-la. Mas esse é só um prefácio da doce aquariana com ascendente em peixes e lua em gêmeos que Isa aprendeu a amar.
Primeiro vieram as dores nas costas, que em menos de uma semana se espalharam pras pernas. E então, pela primeira vez na vida, Dora passou um dia todo na cama. Chorou no fim da tarde quando Isa foi encontrá-la. Queria ver o sol, latir para gatos, e aproveitar o aroma de objetos descartados. Nos dias seguintes Isa começou a lhe trazer algumas peças e objetos antigos pra que ela pudesse inventar novas histórias. Achava que sequestrar um gato na rua pra que a amiga enfrentasse não seria uma ideia inteligente, mas ao menos o pequeno prazer de sentir aromas empoeirados ela poderia proporcionar.
Mais uma semana se foi, e com ela, grande parte do olfato de Dora, assim como a visão, da qual ela começava a reclamar constantemente. Depois vieram as tremuras, cada vez mais fortes, e a fraqueza do corpo, a cada dia mais pálido.  
Isa deixou as lembranças de lado ao perceber uma quietude que não devia estar ali. As mãos de Dora já não tremiam mais. De repente não se ouvia mais tosse alguma. Os olhos da amiga estavam fechados. O coração de Isa saltava no ritmo frenético das lágrimas, que não paravam de cair.  Ela já sabia que aquilo aconteceria, e até ansiava por aquele momento. Não aguentava mais assistir aquele desmanche, e sabia que seria o melhor, tanto pra ela quanto pra Dora. Mas ainda assim não foi menos doloroso. Sentia um mix de alívio e tristeza. Como seria dali pra frente? Saiu correndo, e enquanto corria, as lembranças voltavam, as lágrimas aumentavam e o coração saltava.
E agora? Como vai ser?
Olhou pra frente e viu um vulto de sombra desconhecida. Parou, assustada. Sentiu alguém a cutucando. Virou-se pra trás.
Som de palmas e um coro a gritar:
- ISADORA! ISADORA! ISADORA!
Isadora está numa sala repleta de pessoas, presentes, e balões. Em sua frente, há uma mesa com vários doces e um bolo com velas.
- Isa, faz um pedido! - diz uma garota, enquanto cutuca Isa, que pula de susto antes de fechar os olhos e assoprar as velas de vez.

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