segunda-feira, 14 de novembro de 2016

A memória e a culpa são amigas bem próximas.

    Eu estava assistindo um episódio de Black Mirror que mostrava uma tecnologia capaz de fazer as pessoas apagarem todas as memórias que tinham com alguém com um simples apertar de botão. Bastava clicar em block para que as pessoas não precisassem mais visualizar os rostos daqueles que gostariam de esquecer, e o melhor, ao apertar o famoso botão, os ditos cujos também não poderiam mais entrar em contato de qualquer forma com aquele que decidiu ignorá-los. Normalmente os episódios dessa série me deprimem bastante, mas preciso confessar, quando terminei esse capítulo torci em silêncio pra que tal tecnologia fosse inventada logo. Já imaginou? Poder fugir de todas as lembranças e suas dores com um clique? 
    Alguns dias depois, comecei a assistir uma entrevista com Eliane Brum, uma das minhas escritoras preferidas. Na entrevista, ela falava sobre seus escritos, histórias ignoradas que ela faz questão de contar. Gosto de pensar que Eliane da voz a aqueles que não queremos escutar, afinal, quem gosta de ouvir sobre pobres coitadas de países subdesenvolvidos que estão morrendo de doença de chagas e não tem para onde correr? Esse tipo de realidade fere a gente, e a gente não quer mais feridas, nós queremos deitar na cama após um dia exaustivo de trabalho e assistir uma comédia no netflix, ou sair para beber umas com os amigos e deixar as preocupações para lá. Já estamos muito imersos em nossas próprias dores para ter de pensar sobre as dores dos outros, não é?
     Bom, na entrevista, Eliane conta que conheceu uma dessas garotas. Seu nome era Cristina, e ambas conviveram por dois meses durante uma viagem da escritora à Bolívia. Eliane sabia que não ficaria lá para sempre, e também já imaginava o que o destino deixaria para sua amiga boliviana quando ela se fosse. Cristina também sabia, e no dia em que as duas se despediram, fez uma súplica – ainda que soubesse que não poderia ser atendida – à amiga brasileira: “Não me deixa aqui pra morrer”, foi o que ela pediu. Com o coração na mão, Eliane fez a única promessa que conseguiria cumprir: “Eu vou contar sua história”.
     Ao retornar, a escritora se afoga em uma tristeza profunda. Se sente pequena e completamente inútil, afinal, suas palavras não poderão salvar a vida de Cristina, e nesse momento, muito menos a sua. Eliane conta que durante dias, ela mal conseguia comer, que sua pequenez em meio a aquela situação toda, tão maior que ela, estava a destruindo. Até o dia em que percebeu que seu sofrimento a estava impedindo de cumprir a única promessa que havia feito a sua amiga: contar sua história. E se a história de Cristina não fosse contada, ninguém além das duas conheceria seu sofrimento. Se as pessoas não a lessem, Cristina não mais existiria, e as dores que as duas sentiram seriam em vão. Eliane publicou a história da amiga, e isso fez a dor amenizar – ainda que continuasse existindo.
Eliane conta essa história com uma voz leve e calma, mas ao ser questionada sobre a leveza de suas frases, ri. Não se sente leve – pelo contrário! – Convive com um peso enorme dentro de si. Um peso que é só seu, e do qual não abre mão, pois é parte de sua vivência como narradora de histórias desconhecidas. 
     Nos minutos seguintes, Eliane fala sobre a importância que nossas dores têm, e como perdemos tempo tentando ignorá-las. A dor, assim como a felicidade, é um sentimento pleno, e mais uma prova de que estamos vivos e somos capazes de sentir. E se a gente não sentir, o que isso nos torna?
     Depois da palestra, voltei um pouco atrás sobre o episódio de Black Mirror. Pensei em todas as minhas dores, e nos rostos que já rezei tanto para esquecer. Algumas lembranças me levam a lugares tão sombrios, que eu sinto medo, e o medo – ao contrário do que muitos acreditam – é um grande motivador. Eu sinto tanto pavor de reviver aquele passado no presente ou num futuro, que as lembranças me fazem querer mudar. E eu preciso delas pra saber o que eu não quero voltar a me tornar, o que eu não quero voltar a fazer, e quais são os rostos que eu não quero mais encontrar.

Lembrar pesa, dói, e esquecer de tudo o que machucou, de fato, seria uma forma de fuga maravilhosa. Mas quando a gente nega, fica mais vulnerável a viver a dor de novo, e de novo, e de novo... Até cansar de fugir.
      O esquecimento torna toda a dor vã, e nós precisamos dar a ela um propósito. 

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Inquietações.



   Hoje eu decidi falar sobre uma das surpresas mais maravilhosas que a vida me deu de presente. Um dos melhores amigos que eu tenho, um dos caras mais incríveis que eu já tive a chance de encontrar.Nós nos conhecemos no início de 2014, mas começamos a conversar direito só em Julho. 
   Diz ele que na primeira vez que nos vimos pessoalmente eu o ignorei, como se não o conhecesse, mas eu não me recordo direito da tal ignorada, o que eu lembro é que quando o vi pessoalmente pela primeira vez, numa festa de república, não consegui associá-lo à sua foto do perfil do facebook (até então só nos conhecíamos via internet, e na foto ele não usava o cabelo black power e nem aparentava ter quase dois metros de altura).
   Começamos a conversar em Julho, ele me mandou uma mensagem no whats contando que estava atolado de coisas pra fazer, e que nunca mais queria se enfiar em tanta coisa ao mesmo tempo (mais tarde nós descobriríamos que isso era uma grande mentira, pois seu jeitinho workaholic não deixa que ele sossegue nunca, por mais que a gente implore pra ele descansar!). Não me lembro exatamente do momento em que ficamos tão próximos, mas quando me dei por mim nós fazíamos parte dos mesmos projetos, estávamos sempre nos mesmos grupos de trabalho, íamos juntos às mesmas festas, e compartilhávamos um com o outro nossas alegrias, anseios, medos e sonhos. Eu ganhei mais um irmão, que estaria sempre ali pra me ajudar, sendo com um conselho, um ombro pra chorar, ou pra tirar eventuais borboletas que entrassem na minha casa (se você não sabe, eu tenho pavor desse bicho horroroso).
   Quem estava de fora via o quanto a gente era unido e gostava um do outro, mas nosso companheirismo acabava sempre gerando a ideia errada nas pessoas. Alguém sempre vinha com uma piadinha de como nós éramos um casal bonito, mas a gente não levava a sério. A gente sabia que não tinha nada a ver. Um dia, por puro tédio, nós resolvemos entrar na brincadeira. Colocamos que estávamos em um relacionamento sério no facebook, só pra não perder a piada. A galera foi à loucura, ficamos assustados com a alegria que as pessoas aparentavam sentir com aquilo. Poucas horas depois desistimos, pois notamos que as pessoas não tinham percebido a piada e estavam levando nossa brincadeira à sério demais. Piada besta, assumo.
   Continuamos amigos, ele conheceu uma garota maravilhosa, e agora estão namorando. E eu estou me cagando de medo de perder um dos melhores amigos que eu tenho, mesmo sabendo que essa insegurança não tem sentido, por serem duas coisas completamente diferentes. Mas esse texto não é só sobre o amor que eu sinto por essa pessoa especial, e muito menos sobre perdas. Esse texto está sendo escrito pra mostrar que é possível que duas pessoas de sexo oposto se encontrem ao longo da vida e constituam uma amizade bonita e sem intenção alguma de ultrapassar essa linha. Ele me provou isso, e eu achei essa descoberta linda (sim, descoberta, porque até o dia em que a gente se conheceu sempre que eu começava a desenvolver um pouco mais de afeto por algum amigo, colocavam uma pressãozinha social pra que a gente começasse um romance, e eu ficava tão confusa, que passava muito tempo questionando. E se eu não sentisse a tal atração física e romântica que a plateia cobrava, vinha uma culpa imensa, ainda que eu não tivesse certeza se o cara também não sentia nada, ou se ele correspondia às expectativas das pessoas).

   Hoje eu sei que não existe nada de errado em fugir dessa regra louca que não sei quem inventou. Também tenho total convicção de que amizade entre homem e mulher existe sim, e pode ser tão simples e honesta quanto a de duas mulheres, ou dois homens. E essa é uma sensação libertadora, porque a melhor coisa que existe é você se sentir bem o suficiente pra começar uma amizade sem medo dela ser mal interpretada. Inclusive, eu recomendo.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Seu nome é Guaraciaba, mas eu a chamo de vó.

   
   Dona Ciaba adora cozinhar, e foram suas mãos que fizeram os melhores doces que eu já comi. Ensinou o ofício às filhas, e eu, que sou neta, passei a infância bisbilhotando na cozinha, querendo aprender. 
   A televisão também é sua amiga de tempos, ela adora Ana Maria Braga, é fã de uma boa novela e dia desses me contou que está adorando Velho Chico. Disse que o cenário de época é muito bonito e a história é ótima. Nunca vi nenhum episódio, mas acredito nela, e tenho certeza que seus anos como fã e espectadora fiel dessas dramaturgias a deram muito mais conhecimento sobre quais são as melhores histórias do que qualquer uma das minhas aulas da faculdade.
   Também gosta muito de decorar, e acredito que isso eu peguei um pouco dela. Está sempre mudando os móveis de lugar, nunca teve medo de mexer, remexer e reinventar a própria casa com aquilo que já estava ali. Isso me ensinou muito sobre casas, e sobre o coração também. Talvez a gente não precise de outras coisas e sentimentos, e trocar a ordem em que eles estão façam uma diferença enorme.
   Fim de semana passado eu fui visitá-la, e ela me apresentou ao seu jardim, no qual cultiva flores lindas. Tem orquídea, romã e outras flores que meu pífio conhecimento sobre plantas não me deixa nem saber nomear. Mas dá pra ver que são todas muito bem cuidadas, com todo o seu carinho. E eu achei tão bonito, que até me repreendi por não ter carregado a bateria da câmera na noite anterior pra tentar fazer algumas fotos. Consegui tirar algumas do meu celular, mas não acho que nenhuma foto faria jus a experiência de conhecer ao vivo, escutando aquilo ela dizia enquanto me mostrava.
   Dona Ciaba é dona de muitas outras histórias, habilidades, sentimentos e vivências. Algumas delas eu ainda não tive a oportunidade de escutar, outras o tempo apagou da minha memória, e tem ainda as que eu conheço, mas escolhi guardar pra mim.
Hoje eu acordei com vontade de falar sobre ela, e de como é bom vê-la, ainda que as visitas sejam mais breves agora. Nem mesmo a distância  e os contratempos me fizeram parar de admira-la, e acho que vou carregar esse sentimento bom sempre. Me sinto honrada em conhecê-la, e queria que mais pessoas o fizessem também.


segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Exaustão.

   É pouco mais de meia noite e meia e eu estou exausta. Meu dia começou às cinco da manhã de ontem e parece que não vai acabar nunca. Corre pra cá, vai pra lá, veja isso, anota aquilo, marca e desmarca compromissos na agenda. Queria dormir uma horinha antes da próxima ocupação, mas não dá tempo. Corre mais um pouco então, que se seu dia rende logo, você pode deitar mais cedo à noite. 
   Mera ilusão. Meia noite e meia e eu continuo aqui. Na teoria, as tarefas que cabiam a mim executar hoje já foram realizadas, mas aí, ao deitar na cama e deixar os olhos se fecharem, a mente chama: não, não, querida, você ainda tem coisas pra resolver! Sabe aquela história mal acabada? Você não acha que devia elaborar um plano pra colocar um ponto final? E aquela frase não dita? A vida é curta, lembra? Você devia abrir essa boca logo, antes que o tempo acabe.
   Tento me concentrar na minha respiração, mas a rinite ataca e eu começo a espirrar. Presente, passado, futuro, ATCHIM! Eu só queria descansar por algumas malditas horas, será que é pedir muito?
   O tempo continua passando, as lembranças e os anseios se aproximam mais e mais. Começo a pensar em tudo e sinto vontade de gritar.
   AS PESSOAS NÃO SÃO BRINQUEDOS e é muita ousadia da nossa parte tentar transformá-las em marionetes até cansar da brincadeira e jogar de lado em seguida.
   IMPÔR A SUA OPINIÃO NÃO VAI FAZER NINGUÉM QUESTIONAR PORRA NENHUMA, acho que vou tatuar isso na minha testa, e nas de alguns conhecidos que também não conseguiram aprender isso ainda. Quem sabe assim a gente entende?
   SE EXISTEM TANTAS FORMAS DIFERENTES DE VIVER, PORQUE A GENTE NÃO SE PERMITE EXPERIMENTA-LAS? POR QUE A GENTE PASSA TANTO TEMPO JULGANDO, CRITICANDO E MENOSPREZANDO AS ESCOLHAS DOS OUTROS SE NÃO DIZ RESPEITO À NOSSA MALDITA VIDA? E aliás, por falar em vida, quando a minha, a tua, a do Eduardo Cunha, Dilma, Aécio, e até a do Papa acabarem, nós vamos todos pro mesmo lugar. Da terra viemos, pra terra voltaremos, e juntos, seremos todos pó, então porque a gente não para e se deixa? Por que o meu nariz não para de escorrer? Por que eu não fecho meus malditos olhos e adormeço?


terça-feira, 6 de setembro de 2016

O Absurdo Relato de Corpos Exaustos.

Mariana acorda às seis pra ir pra aula às sete e estuda até às dezoito. Em seguida corre pra casa, toma um banho rápido e às vezes não dá nem pra jantar: precisa ir pro trabalho, que é onde ela fica até às onze. Volta pra casa um caco e antes de se jogar na cama, ainda precisa tirar forças pra encher o estômago vazio e tomar um segundo banho. Completo o ritual, se deita, por volta da uma e meia da manhã, e adormece.
Julio também acorda cedo. Oito da manhã. Da faculdade, pro estágio, e de lá pra reuniões de trabalhos independentes. Chega em casa por volta da meia noite. Diferente de Mariana, ele nem come, dorme sem pensar. O garoto, de dezenove anos, ainda é sustentado pelos pais. Apesar do trabalho contínuo, ainda está naquela fase de ganhar em experiência. Pra depois, se tudo der certo, aí sim, conseguir ganhar algum dinheiro.
Pra ajudar nas contas de casa, Mariana vende cosméticos nas poucas horas vagas. Julio conserta objetos quebrados pra ganhar alguns trocados. 
O dinheiro é pouco, mas é suficiente pra uma festinha ou outra no fim de semana. Uma roupinha nova vez por outra. Sabe como é...
"Sei?" Indaga Geraldo, nos seus trinta e poucos anos e olhar desconfiado. Indaga que com a idade dos garotos já era assalariado, trabalhava dia e noite, e quase não tinha tempo pra dormir, pois a junção da faculdade não deixava. Geraldo exibe o sono perdido, os fins de semana trancado numa sala fechada em frente a um computador, e a falta de tempo pra pensar em namoradas ou ao menos ver um filme no cinema. É seu troféu. Pagou as próprias contas com seu próprio suor e sangue, enquanto os estudantes se dão ao luxo de conseguir dormir de quatro a cinco horas por noite e -veja que absurdo! - juntar alguns trocados pra se divertir! E enquanto isso, seus pais são escravizados em trabalhos cansativos e extremamente mal remunerados pra sustentar os filhos, sem ter um centavo a mais pra gastar. Um segundo a mais pra viver pra si.
E eles, eles sim são os corretos. Assim como Geraldo, abriram mão da própria vida pelo bem de sua integridade. Da boa fama, da admiração dos invejosos, que trabalham tantas horas quanto eles e conseguem ganhar ainda menos. Dos aplausos de seus contratadores, que aprovam o esforço, apesar de quase nunca oferecerem algum reconhecimento.
Mariana vive cansada, pois não tem mais tempo pra nada, mas não pode reclamar, afinal, ela faz tão pouco. Ela tem comida na mesa, ajuda os pais a pagar as contas, e ainda se dá o privilégio de gastar o pouco dinheiro que lhe resta com futilidades. Absurdo! Julio passa o dia todo tentando omitir a inferioridade que sente por ser sustentado pelos pais, que trabalham feito burros de carga, enquanto ele se dá ao luxo de não fazer nada além de estudar, estagiar, realizar trabalhos por fora da faculdade, sem receber nenhum tostão por isso e ainda se permitir gastar o pouco que arrecada com seu pequeno ofício de consertar coisas tomado uma cerveja no fim de semana. Absurdo!
Bem que Geraldo disse! Os jovens de hoje folgam de mais , fazem de menos, e ainda querem o direito de poder viver um pouco! É absurdo! 
Antigamente o dinheiro tinha mais valor que o ser humano!

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Desvendando Amélia.

  Já tem um tempo que ouço falar sobre ela, sempre de um jeito pejorativo, mas - talvez por pura falta de cultura - nunca soube direito quem era. Resolvi vencer a curiosidade, e após alguma pesquisa no google finalmente descobri quem era Amélia.
  A mulher perfeita de Mário Lago e Ataulfo Alves, conhecida pela falta de vaidade e por achar bonito passar fome ao lado do marido. Um perfeito exemplo de submissão: De fato, Amélia é a mulher ideal para qualquer homem tradicional e conservador, convenhamos. Já li vários dizeres feministas falando criticamente sobre ela, e até a cantora Pitty tentou desconstruí-la em uma de suas canções. Ainda bem, penso, mas então, questiono quem de fato teria sido essa mulher, cuja passividade é tão famosa e repreendida.
  Encontrei a resposta em uma reprise do Fantástico, em um quadro no qual eles desvendando as origens de musas da música brasileira. Amélia era doméstica da cantora Aracy de Almeida, e foi apresentada a Mário e Ataulfo pelo irmão da cantora, Almeidinha, que zombava da doméstica, pois era uma mulher humilde, que trabalhava, sem reclamações, realizando todas as tarefas do lar, e ainda tinha seu pouco salário furtado pelo marido. Almeidinha dizia que Amélia contava que às vezes passava fome ao lado do marido, mas achava o sacrifício bonito. Foi daí que os compositores criaram a famigerada música.

  Entendi a origem da música, mas ainda me pergunto quem era a verdadeira Amélia por trás dela. Quais eram seus desejos e vontades? E suas motivações? Quanto deboxe ela aguentou calada? Ou será que aquilo não a chateava? E seus sonhos? Quais teriam sido as ambições que lhe foram tiradas? Pena que Mário e Ataulfo não se deram ao trabalho de perguntar.

Maria Elisa Nascimento

quarta-feira, 20 de julho de 2016

A despedida.

Eram cinco da tarde de uma terça-feira. Isa bateu na porta e ouviu uma voz conhecida, porém agora bem mais fraca, dizer pra que entrasse. Entrou devagar.
- Boa tarde, Dora! Como você está hoje?
O quarto era pequeno. Paredes preenchidas de pinturas, um guarda-roupas, uma penteadeira antiga e, no centro do cômodo, uma enorme cama de casal. Dora estava deitada, quase escondida, por baixo de tantos cobertores. O rosto franzido enaltecia suas rugas, e a boca semi-aberta dava a ela uma expressão de dor. Isa se sentou na cama e segurou as mãos envelhecidas da amiga, que tremiam um pouco mais que no dia anterior.
- Tô feliz que você veio me ver.
Dessa vez sua voz saiu quase como um sussurro. Os olhos quase fechados, lutando pra se manter um pouco abertos, os lábios, trêmulos como as mãos, esboçavam um sorriso. Isa tentou sorrir de volta, enquanto lutava pra que as lágrimas não lhe saltassem dos olhos.
Estava fazendo um mês que Isa assistia a dissolução de sua amada amiga Dora.
Dora, que sempre fora exemplo de vitalidade e movimento. Que estava o tempo todo tramando alguma coisa, lendo sobre um tema diferente, conhecendo pessoas e lugares novos e aproveitando o doce e o amargo da vida. Gostava do exótico, vez ou outra dava um desejo forte, e ela comia queijo com peixe e manga no café da manhã. Seu passa-tempo favorito era visitar todos os brechós que encontrasse, cheirar as roupas e objetos que lhe chamavam a atenção e depois inventar histórias sobre seus antigos donos. Passava suas fábulas pra um caderninho azul, que estava sempre com ela (não se sabia quando iria encontrar algum cheiro que lhe despertaria uma nova narrativa!). Tinha medo de gatos, e sempre que via um latia pra tentar assustá-lo. Dizia que era assim que ela os enfrentava e mostrava que não os deixaria impedi-la. Mas esse é só um prefácio da doce aquariana com ascendente em peixes e lua em gêmeos que Isa aprendeu a amar.
Primeiro vieram as dores nas costas, que em menos de uma semana se espalharam pras pernas. E então, pela primeira vez na vida, Dora passou um dia todo na cama. Chorou no fim da tarde quando Isa foi encontrá-la. Queria ver o sol, latir para gatos, e aproveitar o aroma de objetos descartados. Nos dias seguintes Isa começou a lhe trazer algumas peças e objetos antigos pra que ela pudesse inventar novas histórias. Achava que sequestrar um gato na rua pra que a amiga enfrentasse não seria uma ideia inteligente, mas ao menos o pequeno prazer de sentir aromas empoeirados ela poderia proporcionar.
Mais uma semana se foi, e com ela, grande parte do olfato de Dora, assim como a visão, da qual ela começava a reclamar constantemente. Depois vieram as tremuras, cada vez mais fortes, e a fraqueza do corpo, a cada dia mais pálido.  
Isa deixou as lembranças de lado ao perceber uma quietude que não devia estar ali. As mãos de Dora já não tremiam mais. De repente não se ouvia mais tosse alguma. Os olhos da amiga estavam fechados. O coração de Isa saltava no ritmo frenético das lágrimas, que não paravam de cair.  Ela já sabia que aquilo aconteceria, e até ansiava por aquele momento. Não aguentava mais assistir aquele desmanche, e sabia que seria o melhor, tanto pra ela quanto pra Dora. Mas ainda assim não foi menos doloroso. Sentia um mix de alívio e tristeza. Como seria dali pra frente? Saiu correndo, e enquanto corria, as lembranças voltavam, as lágrimas aumentavam e o coração saltava.
E agora? Como vai ser?
Olhou pra frente e viu um vulto de sombra desconhecida. Parou, assustada. Sentiu alguém a cutucando. Virou-se pra trás.
Som de palmas e um coro a gritar:
- ISADORA! ISADORA! ISADORA!
Isadora está numa sala repleta de pessoas, presentes, e balões. Em sua frente, há uma mesa com vários doces e um bolo com velas.
- Isa, faz um pedido! - diz uma garota, enquanto cutuca Isa, que pula de susto antes de fechar os olhos e assoprar as velas de vez.